A MACUMBA CARIOCA E A CABULA - A REAL ORIGEM DA UMBANDA
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Resolveu-se trazer esse artigo do Prof. Dr. Valdeli Carvalho da Costa, originalmente publicado na Revista Síntese (da Faculdade Jesuítica de Belo Horizonte, no terceiro quadrimestre de 1987), para que os estudiosos das religiões afro-brasileiras tivessem um interessante material de estudo, no qual se pode ver as semelhanças que existem entre a Cabula, Macumba, Umbanda e Quimbanda. O autor foi professor do departamento de teologia da PUC-RJ e defendeu sua tese de doutorado em Roma, em 1981, intitulada “Umbanda – Os Seres Superiores e os Orixás/Santos”. Por se tratar de uma revista editada em 1987 ela não está disponível para acesso em seu sítio de Internet.
O artigo trata do culto de origem banto-angolana
denominado Cabula que floresceu em fins do século passado na área do Estado do
Espírito Santo (Brasil) e foi descrito pela primeira vez pelo Bispo de Vitória
Dom João Batista Corrêa Nery. Fundando-se em Nery e em outras fontes até agora
não exploradas, o autor analisa minuciosamente o culto e o ritual da Cabula e
descreve as suas particularidades.
A Conclusão ressalta a importância que o estudo da Cabula
apresenta para a identificação das fontes da expressão religiosa banto no
Brasil e para a compreensão da atual Macumba.
INTRODUÇÃO
No fim do século passado, tem-se notícia da organização
de um culto de origem banto-angolana na área do Estado do Espírito Santo,
conhecido com o nome de cabula e descrito sumariamente pela primeira vez pelo
então bispo local, D. João Batista Corrêa Nery na Carta Pastoral despedindo-se
dos párocos da Diocese do Espírito Santo.
O relato de D. Nery deixa ver inúmeras identidades entre
a Cabula e a Macumba carioca, esta, na época, ainda não estruturada como culto,
nem designada com tal nome. A descrição da Cabula por D. Nery chamou-nos a
atenção, como já o fizera a Arthur Ramos (1951, p. 103-107) e Roger Bastide
(1968, p. 286) para as inúmeras semelhanças entre o culto da Cabula e os ritos
da Macumba do Rio. Ramos e Bastide acenam a algumas dessas semelhanças. Nossas
pesquisas permitiram descobrir um elenco maior de pontos em comum não
elaborados nem por A. Ramos nem por R. Bastide. Face a esta constatação,
pareceu-nos útil, para o aprofundamento dos estudos afro-brasileiros,
desenvolver os dados por nós encontrados, que patenteiam, com grande riqueza de
matizes, o liame entre a Cabula e a Macumba, como inflorescência tardia do
aparentemente morto rizoma1 cabulístico. Analisemos os dados de D. Nery,
confrontando-os com os nossos.
D. NERY E A CABULA
Em suas visitas pastorais, D. Nery descobriu em sua
Diocese, ao norte do Estado do Espírito Santo, nas cercanias da cidade de S.
Mateus, “três freguesias largamente minadas por uma seita misteriosa” (Nery,
1963, p. 5) que lhe parecia de origem africana. A descoberta motivou-o a tentar
desvendar o mistério com que era celebrado o culto. Com efeito, convocou todas
as pessoas que lhe pudessem fornecer informações. Obteve-as de todas as classes
sociais, com minúcias sobre as cerimônias. Durante os quinze dias em que
permaneceu na região, ocupou-se principalmente do assunto (Nery, 1963, p. 16).
Muitas das informações vieram-lhe diretamente, até de
ex-cabulistas, não obstante o risco de vida a que se expunham ao dá-las, já que
a Cabula obrigava seus adeptos a manterem “segredo absoluto” a respeito do
culto, sob pena de morte por envenenamento (Nery, 1963, p. 5). Isto explica o
tom misterioso e tímido, com que muitas informações foram dadas, como informam
pessoas a par dos relatos. Através desses informantes soube que antes da
Abolição da escravatura o culto era praticado apenas por negros e mui
reservadamente. Após a Lei Áurea, a seita se generalizou, tendo chegado a mais
de oito mil adeptos entre Brancos e Negros. Na época em que pesquisava e
escreveu sobre o assunto (1901) o culto ainda tinha grande número de iniciados
e adeptos, que o praticavam nas três freguesias, nas matas vizinhas à cidade
(Nery, 1963, p. 16).
O CULTO
Segundo Olga G. Cacciatore (1975), a palavra Cabula seria
uma deformação da palavra “cabala”, chegada até os Negros bantos, através dos
malês, de cultura muçulmana. Um culto afro-brasileiro de características
sincréticas, com traços de cultura cabinda, angola e muçulmi, por influência
malê, identificável pelo gorro usado pelos participantes do ritual.
TRAÇOS CARACTERIZANTES
Nestes, há divergências entre o relato de D. Nery, que
tomamos por base desta análise, e as informações recentes de Olga Cacciatore
(1975). Luiz da Câmara Cascudo não se refere à Cabula em seu Dicionário do
Folclore Brasileiro (1980), tornando-se difícil saber se Cacciatore dispôs de
fontes outras a nós ainda inacessíveis. Nesta aporia, apresentaremos as
informações segundo as fontes, sem podermos ajuizar da precedência de uma sobre
a outra.
Cafioto era o termo geral usado para designar os adeptos
da Cabula. Este termo já é a primeira identidade entre a Cabula e a Macumba
carioca. Magalhães Corrêa em “O Sertão Carioca” (p. 217-221), informa que esse
era também o termo usado para designar os primeiros adeptos da Macumba
(Bastide, 1960, p. 286-287). Os camaradas eram chamados de cambas (kambas),
palavra de origem kimbundo, significando “canriarada”. Se homens, chamavam-se
mucambos, se mulheres, macambas. Os iniciados eram os camanás, distinto dos
caialos, os estranhos, os profanos (Nery, 1963, p. 9]. O termo camaná também
era usado para designar irmão de culto. O local das reuniões chamava-se
camucite.
Liturgicamente usavam camisa e calça brancas e pés
descalços. Aqui temos outra semelhança entre a Cabula e a Macumba. O traje
ritual masculino da Macumba é o mesmo da Cabula: calça e jaleco branco e pés
descalços. Hoje, nos terreiros de Umbanda de influxo kardecista já se admite
sapato tênis branco. Olga Cacciatore informa que na Cabula usavam um gorro
(camolelê) na cabeça, à muçulmana, e “largos cinturões com amuletos”. No ritual
entravam espelhos, pedras, cachimbos, infusões de raízes, etc., além de sinais
cabalísticos riscados, tais o signo de Salomão, cruzes, junto com velas acesas.
Nisto também há inúmeras correspondências com os ritos da Macumba, na qual são
usados cachimbos com fumo apresentados às “Entidades” que “baixam” durante o
transe dos filhos-de santo. Estas “Entidades” “incorporadas” após saudarem o
altar, o gongá ou congá, o chefe do terreiro, o “pai” ou “mãe-de-santo” e os
tambores, os atabaques ao retornarem ao local que lhes está destinado no grupo
do iniciados, devem fazer, hoje, sobre a táboa-de-pontos, e no passado, no
chão, o ponto-riscado próprio da “entidade” “incorporada”, uma como assinatura
de autoconfirmação de sua presença. Esta prática da Macumba coincide com os
sinais cabalísticos citados por Olga. Os pontos-riscados na atual Macumba são
formados pela composição e, às vezes superposição, de “estrelas de Vai” nos
terreiros chamados de “signo de Salomão” — dois triângulos superpostos
invertidamente — cruzes, meias luas, estrelas de cinco pontas, flechas, raios,
etc, identicamente ao que se fazia na Cabula.
“Mesa” era o nome dado à reunião dos cabulistas. Os
cultos, “trabalhos” ou “mesas” realizavam-se nas matas. Aqui, outra identidade
com a Macumba. O mesmo nome “trabalho” é usual na Macumba, para designar os
rituais mais secretos, semelhantemente à Cabula, realizados também “nas matas”.
O chefe de cada mesa chamava-se embanda, que é o nome do sacerdote nas
religiões bantos. Os chefes dos terreiros de Macumba, em torno de 1934, quando
Arthur Ramos descreve o terreiro do velho Honorato, chamavam-se também
embandas, Umbandas ou pais-de-terreiro (1940, p. 121). Merece ressaltar que o
termo Umbanda será futuramente a designação de um dos ramos da Macumba, após o
seu desdobramento, por influência do Espiritismo Kardecista. Na Cabula, como
futuramente na Macumba, o embanda era o chefe e doutrinador da comunidade.
Em cada mesa o embanda era auxiliado por um cambone. A
palavra cambone/o/a, provavelmente, procede do kimbundo “,kambundu” com o
significado de negrinho, que em muitos Candomblés de estrutura congo-angolana e
nos Candomblés de Caboclo designam o tocador de atabaques . Também este termo,
cambono, com a mesma função de “auxiliar” do pai-de-santo, encontra-se nos
terreiros de Macumba, continuadas-nos de Umbanda e Quimbanda (V. C. Costa,
1983, p. 579). É o nome dado ao filho/a-de-santo, escolhido/a pelo Pai ou
Mãe-de-santo para acolitar uma “entidade” que tenha “baixado” em uma gira. Ao
cambono compete acender o charuto, o cachimbo, o cigarro ou a cigarriíha e
entregá-los acesos à “entidade” correspondente: Preto-velho, Cabocio, Exu ou
Pombagira “incorporados”. Servem-lhes as bebidas prescritas no ritual, a saber:
vinho tinto ou moscatel para os Pretos-veihos, cachaça, para os Exus e,
recentemente, aniz, para as Pombagiras. Devem acender as velas, anotar as
receitas prescritas pelas “entidades” para os consulentes, assim como, traduzir
para estes, o jargão usado por essas “entidades”.
Na Cabula a reunião dos camanás formava a engira. Esta
palavra igualmente, com a sílaba “en” sincopada, se perpetua na Macumba. “Gira”
é um dos termos usados para designar uma cerimônia cultual da Macumba. É
possível que na Macumba e Umbanda hodierna a expressão proceda da “engira”
cabulística, assim como aproximada do verbo português “girar”, andar à roda,
mover-se circularmente, rodopiar, porque as duas modalidades comportamentais
verificavam-se no antigo ritual da Macumba. O ritual se desenvolvia com os
adeptos dançando e “girando” num grande círculo, uns após os outros, em fila
indiana, como ainda hoje se vê em alguns candomblés e sessões de Umbanda,
realizadas nas matas, como presenciamos várias vezes. A segunda acepção da palavra
“girar”: — rodopiar — girar sobre si próprio, também se ajusta, porque assim se
comportam os adeptos, quando entram em estado de transe. Rodopiam cambaleando,
seguindo a fenomenologia precursora do transe, assim como o fazem, quando já
“possuídos” pelas “entidades”, o “Tatá”.
Na Cabula, os “espíritos” que se acreditava incorporarem
nos iniciados, eram chamados de tatá, palavra que em dialeto kimbundo significa
“pai”. Era um “espírito familiar” bom, que supunham se apossar de um iniciado e
assim, mais de perto, o dirigir em suas necessidades temporais e espirituais. É
a continuação do culto banto aos ancestrais tribais através do transe em
‘estado de possessão’.
A palavra “tatá”, agora com acentuação paroxítona “Táta”,
também permanece na Macumba e se perpetua na Umbanda mais fiel às tradições
angolanas. O termo significa não mais os espíritos dos ancestrais, que se
supunha “incorporar” nos iniciados da Cabula, mas passou a designar na Macumba,
Umbanda e Quimbanda de tradições angolanas “o grande sacerdote”, o grande chefe
de terreiro ou de terreiros, pessoa de grandes conhecimentos do ritual e do
culto.
Entre 1971 e 1972, tive ocasião de entrevistar no Rio de
Janeiro, Tancredo da Silva Pinto, falecido algum tempo depois, considerado no
meio umbandístico o grande “Táta” de Inquice, do ritual Omolocô. A designação
“tatá” para os espíritos de ancestrais protetores sofreu, assim, uma
modificação acomodada ao processo histórico de perda progressiva da memória
ancestral, em consequência da vinda dos Bantos como escravos para o Brasil. Nos
três séculos de vida escrava, a memória coletiva banto esfumaçou a
individualidade dos ancestrais tribais remotos. Foram esquecidos e substituídos
pelo culto dos antepassados mais recentes, falecidos no Brasil, durante o
período de escravidão. Mas, mesmo estes, na vida urbana dos ex-escravos, logo
perderam a própria individualidade, tornando-se apenas arquétipos
estereotipados, hoje designados e cultuados com o nome vago Pretos-velhos, com
uma pseudo-individuação: Pai Francisco de Aruanda, Pai Joaquim do Congo, Maria
Conga, Mãe Benedita etc. Isto, nos terreiros de Macumba, como nas atuais
Quimbanda e Umbanda. Constituem uma das várias linhas das almas cultuadas.
A palavra “Táta” assumiu também outra variante de
sentido, como título de orixás, forças da natureza, advindos do Candomblé para
a Macumba. Assim, o orixá fálico e mensageiro dos demais orixás no Candomblé,
Exu, por vezes é chamado de Tata Veludo; Oxóssi, o orixá dos caçadores é o Tata
das Matas; Xangô, na África, o orixá dos meteoritos, do raio e do trovão e,
atualmente, no Rio de Janeiro, orixá da justiça e das pedreiras, é o Tata da
Pedreira (V. C. Costa, 1983, 249-266).
O RITUAL
Na descrição de D. Nery, o ritual secreto por vezes era
realizado em determinadas casas. Porém mais comumente, “nas florestas”, a altas
horas da noite (Nery, 1963, p. 6). Esta informação se harmoniza também com o
ritual da Macumba e da Umbanda angolana. Algumas festas rituais, como a de
Oxossi, sincretizado com S. Sebastião ou de Ogum, com S. Jorge, no Rio de
Janeiro frequentemente, têm a primeira parte do ritual realizado nos terreiros,
do início da noite à madrugada, continuando após, na madrugadinha da mesma
noite, ou em outro dia, nas matas, onde concluem o ritual, com oferendas às
entidades, incluindo a matança de animais, como presenciamos nas matas da
Gávea, na cidade do Rio de Janeiro, pela Tenda Espírita S. Bernardo e Pena
Branca, em 1972, para comemorar Ogum/S. Jorge.
Essa prática de ter rituais em “casas” – hoje, nos
terreiros – e na “mata” é outro traço da Cabula que se perpetuou na Macumba.
Na Cabula, “à hora aprazada, todos de camisa e calças
brancas, descalços, uns a pé, outros a cavalo, com o embanda à retaguarda,
dirigiam-se silenciosos ao templo, o camucite”. Um camaná ou um cambone ia à
frente, conduzindo a mesa, isto é, a toalha, a vela e pequenas imagens. Em
determinado ponto do caminho tomavam uma vereda, só conhecida dos iniciados,
para chegar ao camucite, o sítio sob uma frondosa árvore, no meio da mata.
PRELIMINARES
Uma vez chegados, limpavam no local uma área circular de
uns cinquenta metros de diâmetro. Faziam uma fogueira e instalavam a mesa do
lado do oriente, rodeando as pequenas imagens de velas, chamadas esteireiras
simetricamente dispostas. As esteireiras eram acesas ritualisticamente: a
primeira, a leste, em homenagem ao mar, Carunga, a segunda, a oeste; a terceira
ao norte; a quarta, ao sul; as restantes, em torno do camucite. Carunga, homenageado
com a primeira vela é a corruptela de kalunga, o mar ou oceano em língua
kimbundo. O termo ainda é usual nos terreiros de Macumba, Umbanda e Quimbanda,
com o mesmo significado, acrescido, porém do qualificativo “grande” — a carunga
grande — para diferenciá-lo do cemitério: a carunga-pequena.
Segundo D. Nery, havia “duas mesas capitulares: a de
Santa Bárbara e a de Santa Maria, subdividindo-se em muitas outras, com as
mesmas denominações” (Nery, 1963, p. 6). Além destas, informa ter recebido
esclarecimentos, não confirmados, da existência de uma terceira mesa, a de
Cosme e Damião, “mais misteriosa e mais central e que exercia uma espécie de
fiscalização suprema sobre as duas outras e cujos iniciados usavam, nas
reuniões, compridas túnicas pretas, que cobriam o corpo todo, desde a cabeça
até os pés, à semelhança do saco dos antigos penitentes” (Nery, 1963, p. 6). A
respeito dessas “mesas diretoras” da Cabula e sua continuação na Macumba, Jacy
Rego Barros (1939, p. 70), numa série de palestras dadas, informava que “As
mesas diretoras do cerimonial, que se encontram nas sessões cabulistas, e que
se acham presentemente em todas as Macumbas, mostram-nos uma direção litúrgica
bem paralela á do ritual maçônico”.
A Cabula, cuja finalidade cultual é a mesma da Macumba e
do Catimbó, deles difere profundamente nas realizações, com o seu Umbanda2 à
frente, dirigindo cerimônias muito sacerdotalmente, no camucite, pois esse é o
ambiente. (BARROS, 1939, 69-70)
INÍCIO DO RITUAL
O embanda descalço, com um cinto de rendas alvas e
delicadas, se não estivesse com o Camolelê (uma espécie de gorro) à cabeça,
amarrava-a com um lenço (Nery, 1963, p. 6-7,9). Seguindo o exemplo do embanda,
faziam o mesmo os camanás. Em alguns terreiros de Macumba e até de Umbanda mais
fiéis às tradições africanas, ainda presenciei esta prática de ajustar um lenço
dobrado em fita, em torno da fronte, amarrando-o atrás à cabeça. A prática está
desaparecendo, não obstante a sua utilidade. Amarra-se o lenço à testa para
impedir o suor descer sobre os olhos, em consequência da sudação provocada pela
agitação decorrente da entrada em estado de transe. Provavelmente esta era
também a razão da mesma prática na Cabula, porque também nela, como veremos
adiante, os adeptos do culto agitavam-se ao entrarem em estado de transe.
Iniciava-se, a seguir, a oração preparatória, rezada de
joelhos diante da mesa. A prática da oração preparatória ainda hoje se repete
nos terreiros de Macumba, Umbanda e Quimbanda. Atualmente, é designada como
Oração de Abertura dos Trabalhos. Pode ser feita de joelhos, à muçulmana, ou em
pé, voltados para o altar (na Cabula, denominado mesa, nos terreiros atuais,
gongá ou congá e nos primórdios da Macumba, canzoá, como informa Magalhães
Corrêa, p. 217-21).
A Cabula reintensifica o aspecto fitolátrico do culto, e
realiza reuniões noturnas e secretas, nas lareiras abertas em redor de árvores
sacralizadas, como a gameleira, sessões a que são chamados os componentes do
grupo religioso, ou sejam os camanás; sessões que têm ritos aproximados das
formas secretas de religiões outras, que afirmam mesmo qualquer influência
islamita, apontando um oriente iniciático que êles não sabem onde realmente se
encontra. (BARROS, 1939, 69-70)
Após a oração preparatória, o embanda se erguia, elevava
os olhos ao céu, concentrava-se e entoava o primeiro cântico, denominado nimbu.
Estes cânticos rituais, hoje, nos atuais terreiros de Macumba são denominados
pontos-cantados.
Eis
o primeiro nimbu:
Dai-me licença, Carunga
Dai-me licença, tatá
Dai-me licença, baculo
Que o embanda qué quendá (Nery, 1063, p. 7).
O nimbu dirige-se ao mar (Carunga), aos espíritos de
ancestrais (tatá) e aos baculos ou bacuros, que eram “espíritos da natureza,
jamais tendo incarnado. Segundo O. Cacciatore, o termo proviria da expressão
iorubá “igbàkúrò” isto é salvador (p. 61). Parece que os baculos tinham
representação estatuária, pois D. Nery afirma que o termo designava pequenas
imagens. Talvez as que estavam sobre a mesa fossem esses baculos. Além de
estátuas, o termo segundo D. Nery, designava também a “raiz”, como veremos logo
a seguir, cujo suco era utilizado no ritual (Nery, 1962, p. 9). A nosso ver,
provavelmente o termo era estendido à raiz – esta talvez um alucinógeno —
porque a ingestão do seu suco favorecesse a entrada em estado de transe, ou
seja, a suposta possessão pelos baculos. Às três categorias de “seres” nomeados
no nimbu pedia-se licença para se iniciar o ritual: o embanda poder “quendá”,
isto é funcionar (Nery, 1963, p. 9).
O nimbu era acompanhado pelas quatan ou liquaqua, as
palmas ritmadas dos camanás. Este procedimento ritual ainda é usual nos atuais
terreiros de Macumba, Umbanda e Quimbanda. Todo o ritual é acompanhado de
pontos-cantados ritmados por palmas, e, liturgicamente, dançados, pelos
filhos-de-santo, com uma ginga de corpo, no local em que se encontram. Como na
atual Macumba, também na Cabula, o ritmo das palmas era muito importante. A
ausência delas por parte de algum camaná era objeto de observação do embanda ao
cambone.
— “Por conta de quem camaná fulano não bate caliquaquá?”
O cambone respondia: – “Por conta de Ca-ussê” (Nery, 1963, p. 7)
O uso do prefixo “ca” precedendo as palavras foi
interpretado por D. Nery como uma “gíria” para dificultar a compreensão do que
era falado no ritual. Na realidade, como observou R. Bastide (1960, p. 285), o
“ka” é um prefixo classificatório banto, conservado na Cabula antes das
palavras portuguesas.
A “POSSESSÃO” DO EMBANDA
Pelo relato de D. Nery, após o primeiro nimbu, o embanda
entrava em estado de transe, pois informa que nesse momento “o embanda em
contorsões, virando e revirando os olhos [fazia] trejeitos, [batia] no peito
com as mãos fechadas e, compassadamente, emitindo roncos profundos, [soltava],
afinal, um grito estridente, horroroso” (Nery, 1963, p. 7). Essa é a
fenomenologia observável em muitos iniciados da Macumba, que se creem possuídos
pelos espíritos de homens depravados, segundo a metamorfose realizada nos
terreiros de Macumba, por influência do Espiritismo Kardecista, sobre o mítico
orixá fálico e mensageiro dos demais orixás, Exu.
Na sequência ritual da Cabula a entidade ‘incorporada’ no
embanda, era objeto, a seguir, de homenagens, como ainda hoje se pratica nos
terreiros de Macumba, Umbanda e Quimbanda. O cambono trazia à entidade
‘incorporada’ um copo de vinho e uma raiz. O embanda mastigava a raiz e bebia o
vinho. Este pormenor importante fornece-nos uma pista para presumir qual a
entidade ‘baixada’ no embanda. possivelmente um tatá, o ‘espírito’ de um
ancestral – hoje, denominado de Preto-velho — e não um bacuro. Por que? Pelo
tipo de bebida oferecida: “um copo de vinho”. O vinho moscatel, ainda hoje, é a
bebida oferecida aos Pretos-velhos, quando ‘baixam’ nos filhos-de-santo dos
terreiros de Macumba, Umbanda e Quimbanda. Se fosse Exu, seria cachaça.
A fenomenologia do estado de transe, contudo, se aproxima
mais do estado de ‘possessão’ de Exus, que dos Pretos-velhos tradicionais. Como
a bebida oferecida foi “vinho” e não cachaça, a entidade ‘baixada’ no embanda
seria um tatá, tendo os traços estereotipados dos atuais Pretos-velhos
traçados, segundo a descrição de pais-de-santo, ou seja, ‘espíritos’ de Exus em
transição para o escalão superior de Preto-velho. Seriam Pretos-velhos ainda
portadores dos traços estereotipados dos atuais Exus da Macumba, Umbanda e
Quimbanda. Este conceito de Preto-velho traçado é recente. Posterior ao influxo
do Espiritismo Kardecista sobre a Macumba. Não pode, portanto, ser aplicado aos
tatás da Cabula. Mas a descrição de D. Nery deixa ver sua presença já em
gestação na Cabula.
Ao “vinho” vinha associada a raiz, atrás acenada. Este,
porém, era o momento de sua presença litúrgica, pela mastigação e deglutição de
seu suco. A mesma raiz reaparecerá mais adiante no ritual de iniciação dos
camanás. Como nos rituais atuais da Macumba, também na Cabula, as oferendas não
se restringiam apenas à raiz e ao copo de vinho. Era complementada com “fumo de
incenso” queimado nesse momento, em um vaso qualquer, em homenagem à entidade e
cuja fumaça era inalada. Também esta prática ritual da Cabula se mantém na
Macumba, Umbanda e Quimbanda, só que deslocada. Na Cabula, era homenagem à
entidade ‘incorporada’ no embanda.
Nas atuais Macumba, Umbanda e Quimbanda transformou-se a
incensação em rito preliminar de purificação ritual do local e dos
participantes, preparatório para a Abertura dos Trabalhos. A incensação
“purifica” o ambiente e as pessoas presentes. Libera-as das “cargas negativas”,
que lhes estão aderentes à pele (pelo fato de andarem nas ruas) e transportadas
para os terreiros ao neles entrarem. A incensação serve também para preparar a
cabeça dos filhos-de-santo para “receberem” as entidades, procurando — como se
fazia na Cabula — aspirar a fumaça do incenso e com ela impregnar a própria
cabeça, trazendo a fumaça com as mãos para as têmporas, fronte e occipital,
visando “fortalecer” a cabeça e melhor poder “incorporar” as entidades.
O SEGUNDO NIMBU
Após a aspiração do incenso, o embanda entoava o segundo
cântico:
Baculo
do ar
Me quisa na mesa
Me tomba a girar (Nery, 1963, p. 7)
Depois do nimbu de abertura do ritual, saudando Carunga,
tatá e baculo e pedindo licença para funcionar – “quendá” – este segundo nimbu
dirige-se exclusivamente ao “baculo do ar”, isto é, ou ao baculo que habita a
atmosfera, ou à atmosfera com seus fenômenos metereológicos. Os dados que
possuímos não especificam a identidade deste “baculo do ar”. Contudo, ele é
chave no ritual, pois o nimbu lhe atribue o poder de fazer o embanda “quisar”
na mesa” e “tombar a girar”. Até o momento deste trabalho não conseguimos
descobrir o significado do “quisar”. A “mesa”, como já vimos, corresponde ao
gongá ou congá (altar) e à todo o ritual da Cabula. O poder de “tombar a girar”
não oferece dificuldade: pede-lhe o embanda que atue de modo a fazê-lo entrar
em estado de transe, segundo a fenomenologia ritual de “girar”, rodopiar até
“tombar”, cair no chão, em estado de transe, como ainda hoje sucede nos
terreiros de Macumba, Umbanda e Quimbanda com os iniciantes no ritual, que
estão aprendendo a “desenvolver a mediunidade”.
Este pedido, na lógica da sequência do ritual descrito
por D. Nery, suporia que o embanda ainda não tivesse entrado em estado de
transe. Mas, como vimos atrás, o embanda já havia entrado. O nimbu, portanto,
deveria ser cantado: ou para obter a possessão, caso ainda não tivesse entrado
em transe; ou, se já estivesse “possuído”, para manter a sequência de hinos do
ritual.
O RITO DO CANDARU
A seguir, informa D. Nery, “o Embanda, ora dançando ao
bater compassado das palmas, ora em êxtase [= estado de transe], recebe o
Cambono o Candaru (brasa em que foi queimado o incenso), trinca nos dentes e
começa a despedir chispas pela boca, entoando o Nimbu:
Me
chame três candaru
Me chame três tatá
Sou embanda novo (ou velho)
Hoje venho curimá. (Nery, 1963, p. 7)
D. Nery define candaru como fogo (1963, p. 9). Com maior
precisão, o candaru, referido neste nimbu, é uma palavra de origem
provavelmente ioruba e não banto, correspondendo ao ase (coador) + ere (barro)
= coador feito de barro, onde eram postas brasas. No ritual, o candaru era
usado como prova iniciática ou de comprovação da autenticidade da “possessão”
por uma entidade. A prova consistia em colocar sobre a cabeça do iniciado, de
cujo transe se duvidava da autenticidade, a vasilha de barro com orifícios no
fundo e dentro fogo vivo (aserê) ou brasas (candaru), sobre as quais se
derramava azeite.
Se o transe fosse autêntico, a pessoa não deveria se
queimar. O rito usado na Cabula o era também em terreiros sudaneses da Bahia e
em outros lugares de influência banto. Aqui, no Rio de Janeiro, nas pesquisas
de campo em terreiros de Umbanda e Macumba ouvi frequentemente referências a
essa prática comprobatória da autenticidade da “possessão” por uma entidade,
mas nos quatro anos de intensiva pesquisa de campo não tive ocasião de
presenciar a sua prática. Ao que tudo indica, está caindo em desuso, pela
pressão de pais-de-santo de formação kardecista, que repugnam todas as práticas
virulentas dos antigos rituais africanos.
Aqui, na sequência ritual, o candaru foi entregue ao
embanda, que o “trincou com os dentes, soltando chispas de fogo pela boca”,
como uma demonstração da autenticidade de sua “possessão”, ante à comunidade. O
candaru foi usado não da forma usual, sobre a cabeça, mas trincado pela borda
com os dentes, de modo a poder, com as brasas próximas da boca, provocar
chispas de fogo, dando a impressão de saírem. Visava impressionar os neófitos,
pois a seguir se fazia a iniciação.
Ao “curimá[r]” D Nery dá o significado de “brincar”
(1963, p. 9). Precisamente, curimar significa cantar curimbas ou corimbas,
cânticos religiosos negro-brasileiros, para saudar ou invocar as entidades do
culto. Seria uma palavra: ou de origem ioruba, formada de “ko” (cantou) +
“orin” (canção) + “ba” (realmente); ou proceder do dialeto kimbundo, formada
pelo prefixo verbal “ku” + “imba” (cantar) (Cacciatore, p. 95).
INICIAÇÃO DOS NEÓFITOS
Após esse nimbu principiava a iniciação dos novos
camanás. Caso houvesse algum neófito, um caialo, com o seu padrinho, durante
essa fase inicial do ritual, devia ter ficado afastado do camucite.
Neste momento, o caialo, vestido humildemente com calça e
camisa brancas sem goma e descalço, após penetrar no círculo, devia passar três
vezes por baixo das pernas do embanda. Era a tríplice viagem, simbolizando a
fé, a humildade e a total obediência ao seu novo pai, como dali em diante
chamará o embanda (Nery, 1962, p. 9). É de se observar que aqui temos o mesmo
tratamento que os adeptos da Macumba dão ao chefe religioso da comunidade:
“pai”, tanto como abreviação do termo pai-de-santo, tradução portuguesa de
Babalorixá [“babá (pai) + “orixá”(santo)], quanto no sentido de paternidade
espiritual do chefe.
Durante a iniciação do caialo, os camanás entoavam hinos
de ação de graças às suas “entidades”, pela aquisição do novo irmão de culto.
Com o caialo de pé diante de si, o embanda recebia de um dos cambonos a emba.
Segundo D. Nery, um pó sagrado feito de tabatinga, espécie de argila branca,
seca (1963, p. 10). Bastide, entendendo erradamento o termo “tabatinga”, julgou
que fosse uma árvore ou arbusto, daí concluir que emba era “um pó mágico, feito
de folhas” (Bastide, 1960, p. 285). Com a emba o embanda friccionava “os
pulsos, a testa e o occipital do caialo” (Nery, 1963, p. 8). Esta também é
outra das identidades entre a Cabula e a Macumba, Quimbanda e Umbanda de
tradições africanas.
A emba da Cabula é a atual pemba dos terreiros, tabatinga
branca ou em cores, compactada em pequenos bastões e usada para traçar pequenos
sinais ou cruzes na fronte, pulsos, peito, peito-dos-pés dos filhos-de-santo.
Exatamente nos mesmos locais do corpo iniciado, assinalados pelo embanda com a
emba sobre os caialos na Cabula. O rito, atualmente em processo de
desaparecimento, é aplicado, segundo informações colhidas entre 1968 e 1972 com
os pais-de-santo, nos rituais semelhantes ao da iniciação da Cabula. Além deste
uso, é aplicado em alguns terreiros, também, sobre os mesmos pontos do corpo de
pessoas que estejam se debatendo “possuídas” por “obsessores” nos terreiros.
Finalmente é usada no traçado dos pontos-riscados nas tábuas de pontos. Após a
assinalação, era-lhes entregue a raiz para mastigar e engolir o suco e um
cálice de vinho para beber. Concluía-se assim, a iniciação. Pronto o caialo, o
embanda o conduzia ao lugar que daí por diante ocuparia na engira, entre os
camanás. Todos os caialos atendidos era a vez dos camanás. Mastigavam a raiz,
ingeriam-lhe o suco e bebiam do vinho. Novo nimbu era entoado ritmicamente
acompanhado pelas palmas dos camanás.
O RITUAL DA VELA ACESA
Na sequência ritual o embanda tomava uma vela acesa,
benzia-a e começava a “passá-la por entre as pernas, por baixo dos braços e
pelas costas” de cada camaná. Este mesmo rito ainda hoje é praticado nos
terreiros de Macumba por filhos-de-santo “incorporados”, especialmente, com
Exus. O rito é usado algumas vezes associado à defumação pela fumaça do
cachimbo ou charuto que a entidade esteja fumando, com a finalidade de
purificar o consulente e liberá-lo das supostas “cargas negativas”, que lhe
estejam aderentes ao corpo. Este é mais um dos ritos que vinculam a Macumba à
Cabula.
Na Cabula, a permanência da vela acesa, não obstante os
deslocamentos no ar pela mão do embanda abaixo e acima, à direita e à esquerda
do corpo do camaná, revelava ao embanda a fé do camaná. O lume aceso patenteava
a robustez de sua fé no culto e em suas “entidades”, por essa razão, quando se
apagava a vela diante de algum camaná, gritava o embanda:
– “Por conta de quem camaná fulano não tem ca-fé,
ca”tudo?” (Nery, 1963, p. 8)
O cambone respondia, mas a falta de fé era punida com
duas, três ou quatro palmadas com o “quimbandon”, a palmatória, até que a vela
não mais se apagasse. Os castigos eram frequentes e aplicados pelo embanda para
aperfeiçoar os camanás.
A TOMADA DO SANTÉ
Comprovada a fé de todos os camanás, chegava-se ao ápice
do ritual: “a tomada do Santé”. Esta expressão requer análise. À uma leitura de
afogadilho, crer-se-ia que o Santé fosse uma bebida, algo que se toma, bebe. Na
realidade significa ser tomado, possuído, pelo Santé. No pequeno glossário
anexo ao texto, D. Nery define “Santé” como “Espírito Principal”. Olga
Cacciatore informa que “Santés” são os “espíritos da Natureza” (p. 75), ao que
se vê, conceito semelhante ou idêntico ao de “bacuro”. Roger Bastide esclarece
que “Santé” é a abreviatura da palavra “santidade”, presente nos primórdios da
colonização do Brasil e combatida pela primeira Visitação do Santo Ofício, como
atestam as Confissões da Bahia de 1591 – 1592. Era um culto sincrético, de base
indígena com elementos do Catolicismo popular e o uso do fumo.
O “espírito de santidade”, ou “Santé” era o transe obtido
pela inalação do fumo do tabaco, “a erva sagrada” (Bastide, 1960, p. 241-242;
285). O termo foi assumido pelo Culto dos Caboclos, mais ou menos cristianizado
e disseminado pelo sertão nordestino, estando nas origens do Catimbó atual.
Dele, provavelmente, os cabulistas tomaram a expressão para designar esta parte
central do ritual. A “tomada do Santé”, portanto, significa “receber o Santé”,
isto é, “incorporar”, ou como é dito na Macumba carioca “receber o santé” ou “o
santo” O termo “santé” ainda hoje é usado nos terreiros de Macumba e mesmo de
Umbanda, como ouvi expresso pelo pai-de-santo do extinto Templo Umbandista da
Legião Espiritualista de Assistência Social, na rua S. Clemente n9 321 em Botafogo
(RJ) durante as pesquisas de campo realizadas entre 1968 e 1972.
Informa D. Nery que a “tomada do Santé” era o “ponto
principal de todas as reuniões” (1963, p. 8). O fato corresponde exatamente à
finalidade central de todas as sessões de Macumba, Quimbanda e Umbanda:
“receber” as entidades, para que “venham trabalhar e fazer caridade”, como
dizem. Nessa expectativa dobravam um lenço branco em forma de fita, cingindo
com ele a testa e amarrando-o à nuca. Como D. Nery havia relatado que no início
da engira todos os camanás já o haviam feito, supomos que o reiterar a
referência esse momento queira se referir aos novos camanás recém-iniciados.
Para aumentar a concentração psicológica do grupo,
reduziam a intensidade luminosa da fogueira e perfumavam o ambiente queimando
incenso ou rezinas aromáticas. Os dois procedimentos rituais ainda hoje são
usados nos terreiros de Macumba para criar condições ambientais propícias à
entrada em estado de transe e à “possessão” pelas “entidades”. Houve nessa
continuidade histórica, contudo, um deslocamento: a incensação foi antecipada,
realizando-se no início de todo o ritual, como cerimônia preliminar de
purificação do ambiente, antes de se iniciarem as giras, mas, a redução da
luminosidade continua como preparação ambiental imediata para a “descida” das
“entidades”, como se fazia nas engiras da Cabula. Agora, nos terreiros, onde
não se acendem fogueiras, apagam-se as lâmpadas comuns ou de luz fria e
acendem-se pequenas lâmpadas azuis, para dar ao ambiente uma luminosidade difusa
de luar.
Criado o condicionamento imediato para a “possessão” pelo
Santé, entoava-se o cântico evocativo. Ao ritmo das palmas, informa D. Nery,
dançava o embanda, “esforçando-se com grandes gestos e trejeitos, para que o
Espírito se apoderasse de todos. Quase sempre há em cada Mesa mais de um
Embanda e o esforço do Embanda chefe é no sentido de dar o Santé aos Embandas
inferiores, para que sejam dali afastados” (Nery, 1963, p. 8]. O relato desta
parte do ritual é confuso, embora coerente no início, com o que vem sendo
narrado e que ainda se observa atualmente nos terreiros de Macumba. O final
parece contraditório. Vejamos:
Informa que “quase sempre há em cada Mesa mais de um
embanda”. Se entendermos o termo “embanda”, como vem sendo usado até agora, com
o sentido etimológico de sacerdote do culto banto na Cabula, a frase informa
que na Cabula não havia um único embanda, mas vários, em hierarquia. Um embanda
chefe e outros embandas subordinados, ou subchefes. Essa hierarquia ainda se
encontra hoje nos terreiros de Umbanda, procedentes da antiga Macumba, como
constatamos, entre outros, no Templo Umbandista da Legião Espiritualista de
Assistência Social, acima citado; na Tenda Espirita Pai Jerônimo, rua Barão de
Ubá, 423 – fundos (Praça da Bandeira); na Tenda Mirim, Av. Marechal Rondon, n9
597 (S. Francisco Xavier) (V. C. Costa, 1983, p. 313; 496-97; 22).
– Diz-nos que a preocupação e trabalho do “Embanda chefe
é de dar o Santé aos embandas inferiores”, portanto, ajudar, criar condições
para que também os “embandas inferiores incorporem as entidades”. Até aqui,
tudo lógico. Mas a subordinada final – “para que sejam dali afastados” – parece
ilógica! “Dá-se o Santé aos embandas” para afastá-los do ritual? Isto não tem
sentido na lógica do ritual.
“Embandas inferiores” estariam sendo usados como sinônimo
de “espíritos inferiores”, que devem ser afastados? Neste caso, o termo
“embanda” não está sendo usado com o significado de “sacerdote”, mas de
“espírito”, “Santé”, tornando equívoco o relato. Quando nos terreiros os
adeptos “recebem” suas entidades não se afastam do terreiro. Permanecem nele,
“incorporados”. Como consequência, as entidades que “incorporam” não se
afastam, antes, tornam-se “presentes”, por meio da “incorporação”. Assim, não
se entende como possam “ser afastados”, sejam os “embandas inferiores”, seja o
“Santé”. Cremos que o impasse esteja no uso equívoco do termo embanda.
Parece-nos que para o trecho ter lógica é necessário manter o termo “Santé”
como designando o “espírito principal”, que pode ser dado a todos os “embandas
inferiores”. Desse modo, o “espirito principal”, o Santé, por sua força
preternatural afastaria os “espíritos inferiores”, perniciosos e prejudiciais,
presentes no ar, no local do ritual. Esses “espíritos inferiores”, prejudiciais,
razão pela qual devem ser “afastados” — corresponderiam ao que hoje nos
terreiros de Macumba se designa como quiumbas e obsessores. Cremos ser esse o
sentido do texto, pois, no parágrafo seguinte, informa D. Nery que “de espaço a
espaço todos [atiravam] emba para o ar, a fim de que se afastem os maus
espíritos”. (Nery, 1963, p. 8-9)
Esse gesto ritual — “atirar emba para o ar” — não teve
continuidade na Macumba e muito menos, na Umbanda atual. Permanece
característico da Cabula, por ter sido a emba — hoje, pemba — compactada em
bastonetes para seu atual uso. Na forma arcaica de uso, como pó, é possível e
tem sentido, “atirá-lo para o ar”, pois, as partículas do pó sagrado,
espalhando-se na atmosfera, entravam em contato com os “maus espíritos”, que
nele se encontrassem afastando-os pela incompatibilidade mágico-religiosa da
natureza sagrado-benéfica da emba oposta à maléfica dos maus espíritos.
Além desta finalidade, o rito tinha também uma segunda:
“cegar os profanos” para que não vissem ou devassassem os sagrados mistérios.
As partículas da emba no ar atingiriam os olhos dos profanos curiosos.
A POSSESSÃO PELO SANTÉ
“De repente um deles, geralmente o embanda, verga o
corpo, pende a cabeça e rola pelo chão, em contorções. A fisionomia torna-se
contraída, todo o corpo como que petrificado e sons estertorados lhe escapam do
peito. É o Santé que dele se apoderou”. (Nery, 1963, p. 9)
Esta descrição corresponde ao estado de transe “selvagem”
nos terreiros de Macumba, Umbanda e Quimbanda, no qual o iniciado ainda não
aprendeu a ‘receber’ a entidade, permanecendo de pé, sem rolar pelo chão. Pode
também ser a fenomenologia da assim dita “incorporação” de Exus e obsessores na
Macumba, Umbanda e Quimbanda. Esse modo violento e doloroso, para os que são
objeto deste tipo de transe, no dizer dos pais-de-santo dos terreiros, pode ser
sinal da “presença” ou de um obsessor ou a forma “punitiva”, com que uma
entidade “castiga” um filho-de-santo, que fez algo que lhe proibira, ou por ter
infringido algum interdito cúltico. Como “punição” por “entidade superior” a
fenomenologia é rara. As convulsões, contorções, jogar-se ao chão, esfolando-se
no pavimento, na explicação dos pais-de-santo dos terreiros, são
características do modo de se “apresentar” dos obsessores. Como é perceptível,
essa tipologia comportamental corresponde, na verdade, a um estado psíquico
conflitual violento, que tolhe ao adepto todo o autocontrole.
A POSSESSÃO DOS CAMANÁS PELOS SANTÉ
“Receber” o Santé não era privilégio exclusivo dos
embandas-chefes e subalterno. Também os simples iniciados, os camanás, o podiam
e, de fato, o “recebiam”. Quando isto sucedia, os camanás “possuídos” pelo
Santé, se transformavam psico-comportalmente. Informava D. Nery: “nesse período
[o camaná] fala e discorre, sem ter aprendido, sobre as cousas cabulares, como
o mais perfeito e sabido dos embandas” (Nery, 1961, p. 9). O camaná que
“recebesse” o Santé se destacava de pronto dentre os demais e ascendia rapidamente
ao status de embanda.
Do visto, ser “possuído” pelo Santé oferecia vantagens. A
promoção no culto não era a maior decorrência de algo ainda mais precioso e
buscado tenazmente pelos que se iniciavam no culto: a aquisição de um
“espírito” que os “guiasse”’ e “protegesse” em todas as necessidades duríssimas
de suas vidas de escravos ou ex-escravos. Ter um “espírito-guia” era ter um
“protetor” precioso. Esse “guia” e “protetor” buscado era “encontrado” por meio
do Santé, do estado de transe. Daí todos trabalharem e se esforçarem por entrar
em transe — ter o Santé — sujeitando-se, para isso, no dizer de D. Nery, a
“diversas abstinências” e “ridículas penitências” (963, p. 9). Aqueles que
conseguiam “ser tomados pelo Santé” buscavam imediatamente “obter o seu
espírito familiar protetor, mediante a cerimônia ritual de embrenhar-se no mato
com uma vela apagada e retornar com ela acesa, não tendo levado consigo meio
algum para acendê-la — o que implica o conhecimento do modo de obter fogo por
meio de atrito de madeiras ou de chispas de pedras — Com a vela acesa o camaná
devia trazer o nome do seu “espírito protetor” sendo os mais comuns: Tatá
Guerreiro, Tatá Flor da Carunga, Tatá Rompe Serra, Tatá Rompe Ponte, etc.
A busca cabulística de um “guia” e “protetor” para as
dificuldades da vida diária se repete na agonizante Macumba e nas suas
continuadoras, a Umbanda e a Quimbanda, decorrentes de sua cisão. Também no que
atine aos nomes desses “espíritos protetores” há uma relativa continuidade
entre a Cabula e a Macumba, Umbanda e Quimbanda. Muitos deles, com variações de
significado e aplicação, ainda são perceptíveis nos atuais terreiros:
O termo “tata“, como já vimos, desapareceu como prenome
de entidade, adotando novos significados.
“Carunga“, hoje dito caiunga [calunga], não é mais
cultuado, como entidade protetora pessoal. Permanece como arcaico nome banto do
oceano: a caiunga-grande. Como força preternatural, objeto de culto, foi
substituído no Brasil, por lemanjá, conceito ioruba, que no Brasil, passou a
ser a orixá do mar.
Os designativos acoplados ao verbo “romper” –
significando “força preternatural”: “rompe serra”, “rompe mato”, “rompe ponte”…
— ao lado da formação de novos nomes de significado similar — ainda continuam a
existir nos terreiros atuais, mas aplicados a Caboclos (pseuda alma de índios)
tais como: Caboclo Rompe Serra, Caboclo Rompe Mato etc.
Com essas informações encerra D. Nery o seu relato sobre
o ritual. Não tendo a preocupação etnológica, mas apenas o “zelo pastoral” de
“tomar algumas notas [oferecidas] à consideração e ao estudo dos curiosos”
(Nery, 1963, p. 5) não descreve a conclusão do ritual. Esta lacuna final não
desmerece a importância do relato. Ainda hoje é o que de mais importante temos
sobre a Cabula.
CONCLUSÃO
O estudo da Cabula apresentado por D. Nery deu-nos acesso
às raízes das arcaicas formas de expressão religiosa banto no Brasil. O relato,
como vimos, ajuda-nos a entender a origem de muitas das formas de expressão do
culto de Macumba, que se transmitiram à Quimbanda e à Umbanda atuais, no que
ainda conservam de suas raízes africanas. Detectamos essas raízes nas
identidades que procuramos levantar ao longo do trabalho, iniciando-se com o
termo cafioto, usado nos primórdios da Macumba rural, passando pelas mesmas
litúrgicas calças e camisas brancas pés descalços e lenço em fita amarrado à
testa. Na Cabula, como na Macumba, o sacerdote do culto denominado embanda ou
Umbanda, recebendo o mesmo tratamento de “pai” pelos caialos e camanás da
Cabula como os atuais pais-de-santo dos terreiros de Macumba, Umbanda e
Quimbanda o recebem de seus filhos-de-santo. A mesma hierarquia do embanda
chefe e embandas subordinados da Cabula continuada na Macumba e Umbanda entre
os pais-de-santo e os subchefes dos terreiros. Os embandas, como os atuais
pais-de-santo, acolitados por cambonos com idênticas funções nos dois cultos.
A sucessão de identidades continuou nos objetos rituais:
cachimbos, velas, signos cabalísticos — hoje pontos-riscados compostos de
cruzes, meias-luas, estrelas de cinco e seis pontas, flechas, raios, etc. O
quase idêntico uso da emba, a autal pemba, nos dois cultos. O mesmo termo
“engiara” ou hoje “gira”, para designar o ritual movimentado em círculos dos
adeptos da Cabula, como da Macumba primitiva. O ritual cabulístico realizado em
casas e nas florestas, repetindo-se nos terreiros de Macumba, Umbanda e
Quimbanda, com a primeira parte nos terreiros e a conclusão das giras festivas
nas matas. O termo “mesa”, designativo das reuniões dos cabulístas, ainda usual
em 1939 na Macumba carioca.
A repetição — ajustada às lâmpadas elétricas dos atuais
terreiros — da prática cabulística de reduzir a luminosidade da fogueira que
iluminava o camucite, para favorecer a concentração psicológica dos adeptos e
entrarem em estado de transe. A continuação da oração preparatória inicial do
culto na atual oração de abertura dos trabalhos. A estrutura musical do culto
pontilhado de nimbus ritmados pelas quatan ou liquaquá, as palmas que se
repetem nos atuais pontos-cantados ao ritmo de atabaques e palmas. A
permanência do nome de Carunga, o oceano, na atual designação da
caiunga-grande, embora tendo cessado na Macumba o culto a ele. O termo Santé
vez por outra ainda usado nos terreiros com idêntico significado de ser
“possuído” por uma entidade ao entrarem em estado de transe. A “possessão” pelo
Santé não privilegiando apenas o embanda chefe e os embandas subalternos mas
acessível também aos camanás a repetir-se na Macumba, onde não apenas o pai ou
mãe-de-santo “recebem” as entidades, mas igualmente os filhos-de-santo.
As identidades prosseguiram na mesma busca de um “guia”
pessoal na Cabula como na Macumba. Os nomes dos “guias” mantidos relativamente,
como “Tatá”’, hoje com acentuação paroxítona e significado mais amplo. O mesmo
tipo de homenagens às entidades “baixadas”, como o “vinho”, para os antigos
tatá e os atuais Pretos-velhos, acompanhado do mesmo uso do incenso, embora com
deslocamento na sequência ritual. O rito da vela acesa, passada ao redor do
corpo do camaná continuado nos terreiros de Macumba, Umbanda e Quimbanda em
torno do corpo dos consulentes atuais. Por último e ainda que em processo de
esquecimento, o uso cabulístico da prova do candaru para autentificar a
“possessão” por uma entidade.
Este acúmulo de identidades, a nosso ver, não só revelam
a origem banto comum dos dois cultos, como sugerem uma continuidade histórica,
intermediada por um período de encasulamento e metamorfose da Cabula na atual
Macumba, esta, ressurgida algumas décadas após, a princípio, na área rural e,
em seguida, inserida no contexto da periferia urbana da cidade do Rio de
Janeiro, com extensão para São Paulo e Espírito Santo, na Umbanda.
REFERÊNCIAS
BARROS, Jacy Rego. Senza e Macumba. Rio de Janeiro:
Rodrigues e Cia, 1939.
BASTIDE, R. Les Religions Africaines au Bresil. Paris: Presses Univers. de
France, 1971
CACCIATORE, Olga Gudolle. Dicionário de Cultos Afro-brasileiros. Rio de
Janeiro: Ed. Forense universitária/SEEC, 1977.
CASCUDO, Luis da Camara. Dicionário do Folclore Brasileiro. São Paulo: Ed.
Melhoramentos, 1980.
CARNEIRO, Édison. Negros Bantus. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937.
COSTA. Valdeli C. da. Umbanda – Os “Seres Superiores” e os Orixás/Santos. São
Paulo: Ed. Loyola, 1983.
NERY, D. João B. Corrêa. “Um Culto Afro-brasileiro” em Cadernos de Etnografia e
Folclore, Comissão Espírito-santense de Folclore, Vitória, 1961.
_____ “Lembranças da Visita Pastoral” [Caderno manuscrito], em Cadernos de
Etnografia e Folclore (3), Comissão Espírito-santense de Folclore, Vitória ,
1963.
RAMOS, Arthur. O negro Brasileiro. São Paulo: Editora Nacional, 1951.
RODRIGUES, R. Nina. Os Africanos no Brasil. São Paulo: Editora Nacional, 1932.
[1] O autor deste artigo utiliza a palavra “rizoma” no
sentido em que os filósofos pós-modernistas Gilles Deleuze e Felix Guattari dão
a ela, no qual o rizoma seria algo que surge de algum “acidente” impossível de
ser descrito, mas que de alguma forma irrompem e alteram o fluxo histórico,
articulando novas ideias e pensamentos.
[2] Note-se que Jacy Rego Barros chama o Sacerdote da Cabula de Umbanda e não
de Embanda, como o faz D. Nery, entre outros. É necessário que se destaque
isso, pois esse nome se tornará o nome de uma religião no Século XX.
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